Escrito por: MST-PR

Corte Interamericana divulga sentença pelo assassinato do camponês Antonio Tavares

Violações de direitos marcam o massacre ocorrido em 2000, que também vitimou mais de 185 pessoas. Justiça brasileira não responsabilizou envolvidos

Juliana Barbosa / MST-PR

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), divulga, no dia 14 de março, a sentença contra o Estado brasileiro pela omissão e não responsabilização dos envolvidos no assassinato do trabalhador rural Antonio Tavares e às lesões sofridas por mais de 185 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os crimes foram cometidos por agentes da Polícia Militar do Paraná, durante a repressão, na Rodovia BR-227, em Campo Largo (PR), a uma marcha pela reforma agrária que ocorreria  em 2 de maio de 2000 na cidade de Curitiba. A transmissão do comunicado da Corte inicia às 10h30 (horário de Brasília), pelo canal da Corte, e será acompanhada pelos autores da ação, familiares, vítimas e representantes do Ministério de Relações Exteriores, entre outros órgãos.  

O episódio é considerado pelo MST “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização da luta pela terra. Diante do arquivamento do caso na justiça brasileira e manutenção da impunidade, o caso foi denunciado em 2004 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). As organizações solicitaram à CIDH que o caso fosse levado à Corte Interamericana. O caso foi submetido à Corte Interamericana em fevereiro de 2021. Nos dias 26 e 27 de junho de 2022, foi realizada a audiência na Costa Rica com as organizações representantes das vítimas, a viúva de Antônio Tavares, Maria Sebastiana, a também vítima Loreci Lisboa, a perita Ela Wiecko Volkmer de Castilho e representantes da CIDH e da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e da Casa Civil do Paraná, esses na figura de representantes do Estado brasileiro. Na ocasião o Estado brasileiro não conseguiu contestar a agressão aos manifestantes e assassinato de Tavares.  

“Temos a expectativa de que a decisão da CIDH contribua para articularmos forças para pautar o estado brasileiro na investigação e responsabilização de quem pratica violências e violações de direitos humanos. E mais, apontar a necessidade dos governos em assumir o compromisso de combater essas práticas com políticas concretas de solução dos conflitos, que é retomar a reforma agrária e os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do campo”, menciona Ayala Ferreira da direção nacional do Setor de Direitos Humanos do MST. 

Para a coordenadora de incidência internacional da Terra de Direitos, Camila Gomes, as condenações do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos merecem uma grande atenção “pois tratam dos maiores desafios que o país enfrenta em matéria de direitos humanos e que, sem respostas por parte das autoridades nacionais, precisou ser levado a um Tribunal Internacional. Além da violência cometida por policiais militares contra uma mobilização popular e a completa impunidade desses crimes, o Brasil foi instado a responder internacionalmente sobre o processo de estigmatização e criminalização das pessoas que lutam pelo direito de acesso à terra no Brasil, e especificamente do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, sobre o tratamento desigual conferido pelo Poder Judiciário aos Sem Terra, a paralisia da política pública de Reforma Agrária, dentre outros”, diz. “Em sua decisão, a Corte trará uma análise detalhada de cada uma dessas questões à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos e estabelecerá as medidas que o Brasil deve adotar, de modo obrigatório, para superar esses problemas graves e estruturais”, complementa.   

“O caso Antonio Tavares permitirá à Corte Interamericana não apenas analisar a relação entre a ausência de uma reforma agrária no Brasil e a violência contra as trabalhadoras e trabalhadores rurais que lutam pela terra, como o papel que vem cumprindo a Justiça Militar na manutenção de um quadro de ausência quase completa de responsabilização de militares, em especial policiais militares, por violações de direitos humanos já no período democrático,” enfatiza Eduardo Baker, da Justiça Global. 

É importante lembrar que, por meio do Decreto 4463/2022, o Estado brasileiro reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998, ou seja, se submeteu expressa e voluntariamente à sua jurisdição. Deste modo, assumiu perante a Comunidade Internacional o compromisso de dar cumprimentos às decisões da Corte IDH, que são obrigatórias e irrecorríveis, com determinações direcionadas a todas as esferas do Estado brasileiro, poder executivo, legislativo e judiciários, e em todos os níveis de governo (municipal, estadual e federal).  

 

Sem Terra impedidos de se manifestar e denunciar violência sofrida
Na época dos fatos do caso, vivia-se no Paraná um contexto de muita violência contra camponesas e camponesas, com criminalização da luta pelo direito de acesso à terra, ameaças e assassinatos de lideranças do MST e uso do terror nos despejos, atuação abusiva da polícia, ação de pistoleiros e ausência de política pública de reforma agrária. Já haviam sido assassinados em contexto similar no mesmo Estado: Diniz Bento da Silva (o “Teixeirinha”), Sebastião Camargo, Sétimo Garibaldi, e muitos outros.  

Em maio de 2000, mais de 1500 Sem Terra, homens, mulheres e crianças, se mobilizaram para ir até a cidade de Curitiba reivindicar o fim da violência policial contra o movimento e a retomada da reforma agrária. No entanto, foram violentamente reprimidos ainda na BR 277 e impedidos de chegar à cidade de Curitiba. A marcha pela Reforma Agrária daquele 2 de maio nunca aconteceu, Antônio Tavares Pereira foi atingido por um disparo de arma de fogo e faleceu no mesmo dia, mais de 185 pessoas ficaram feridas. Pela dimensão da violência utilizada, o número de vítimas fatais poderia ter sido bastante maior.  

Ninguém foi responsabilizado pelos fatos.  

Ausência de resposta da justiça brasileira
Em 04 de maio de 2000, foi instaurado Inquérito Policial Militar para investigação da atuação dos agentes de segurança pública envolvidos na ação que resultou no assassinato de Antonio Tavares. Poucos meses depois, no dia 09 de outubro, o Ministério Público Militar justificou a atitude do policial, isentando-o de responsabilidade, e emitiu um parecer requerendo o arquivamento dos autos. Já no dia seguinte, em 10 de outubro, mesmo dia que recebeu os cinco volumes do inquérito policial, o juiz militar determinou o arquivamento do caso, acolhendo o argumento de que os agentes agiram em consonância com “estrito cumprimento do dever legal”.   

Em paralelo ao que acontecia na justiça militar, o Ministério Público Estadual, entendendo que se tratava de homicídio doloso, portanto, de competência da Justiça Estadual (Justiça Comum), ofereceu denúncia contra o policial Joel de Lima Santa Ana. No entanto, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, através de habeas corpus impetrado pelo réu, encerrou o processo criminal com o argumento de que o caso já havia sido arquivado pela Justiça Militar. A Procuradoria de Justiça (MP/PR) não recorreu dessa decisão. Com isso, os inquéritos de apuração dos responsáveis pelo assassinato de Antonio Tavares foram arquivados em todas as instâncias e o policial foi absolvido.  

As lesões corporais impostas às mais de 185 pessoas que resultaram feridas jamais foram objeto de investigação pelas autoridades locais.  

As violações a direitos no caso foram denunciadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2004. Em seu Relatório de Mérito, proferido em 2020, o CIDH apontou que o Estado brasileiro não apresentou explicação que lhe permitisse considerar que a morte de Antonio Tavares resultou do uso legítimo da força. Pelo contrário, a Comissão ressaltou que - diferente do que o Estado argumenta - o tiro que causou a morte de Tavares partiu de um policial militar, que o referido agente não agiu em legítima defesa, mas sim para assustar os manifestantes e que o tiro foi disparado quando a vítima estava desarmada. A viúva e os filhos de Antônio Tavares ainda aguardam o pagamento da indenização por danos morais e materiais pela Justiça brasileira.  

Requerimentos apresentados à Corte Interamericana  

Além da adoção de medidas de justiça, memória e reparação para os familiares de Antonio Tavares, as mais de 185 vítimas e o próprio movimento social, as organizações representantes das vítimas no caso requerem à Corte IDH que determine, como garantia de não-repetição, que o Estado brasileiro elabore e execute um Plano Nacional de Reforma Agrária, com recomposição orçamentária e destinação prioritária de terras públicas.  

As organizações solicitaram ainda que a Corte determine ao Estado brasileiro a elaboração de um Plano Nacional de Combate à Violência no Campo, com garantia de ampla participação da sociedade civil organizada, a rejeição a qualquer proposta de alteração da Lei nº 13.260/2016, conhecida como “Lei Antiterrorismo” e o compromisso do país de alteração da cultura institucional autoritária e violenta ainda existente nas forças policiais, por meio de um plano de ação compatível com legislações internacionais sobre o tema, entre outros requerimentos.  

Outro pedido se refere à proteção ao Monumento Antonio Tavares. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, a obra representa uma memória coletiva da luta pela reforma agrária e intensa violência do Estado brasileiro contra trabalhadores rurais Sem Terra e encontra-se na BR-277, nas proximidades do local onde em maio de 200 ocorreu a repressão pela Polícia Militar do Paraná. Após decisão liminar da Corte (Medidas Provisórias adotadas em 24 de junho de 2021), em caráter emblemático e inédito, de proteção ao monumento até finalização do julgamento, a obra foi reconhecida como patrimônio municipal histórico-cultural pela Prefeitura de Campo Largo (PR) em julho do ano passado. 

O caso Antonio Tavares é o décimo terceiro julgado pela Corte Interamericana contra o Brasil e, desse total, é o terceiro envolvendo violações contra trabalhadores rurais Sem Terra. Em 2009, a Corte considerou o Brasil culpado pela não responsabilização dos envolvidos no assassinato de Sétimo Garibaldi, agricultor morto em 1998 durante um despejo ilegal de um acampamento do MST, em Querência do Norte, também no Paraná. No mesmo ano, a Corte também condenou o Brasil pelo uso de interceptações telefônicas ilegais contra associações de trabalhadores rurais ligadas ao MST, também no Paraná.  

O Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 1996 no Estado do Pará e que resultou no assassinato de 19 trabalhadores rurais e dezenas de feridos, é outro caso emblemático de violência contra Sem Terras e que, também, foi levado à esfera internacional em razão da impunidade. O caso foi admitido pela Comissão Interamericana em 2003 e passou muitos anos em negociação para uma solução amistosa, a qual, ao final, restou infrutífera. Atualmente, o caso aguarda análise de mérito pela Comissão. Outros casos envolvendo violência contra Sem Terras encontram-se em tramitação perante a Corte Interamericana: o assassinato de Manoel Luiz em 1997 e o desaparecimento forçado de Almir Muniz em 2002. Recentemente, em fevereiro deste ano, os dois casos passaram por audiência pública na Costa Rica, ocasião em que o Brasil assumiu parcialmente sua responsabilidade. Os dois casos aguardam sentença.  

Relembre o caso 

Antonio Tavares Pereira foi assassinado em 02 de maio de 2000, mais de 1.500  integrantes do MST se dirigiram à capital paranaense para participarem da Marcha pela Reforma Agrária, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores e Trabalhadoras, mas a manifestação foi duramente reprimida pela polícia. Sob comando do governador à época, Jaime Lerner (antigo DEM), sem qualquer ordem judicial, a Polícia Militar do Paraná, organizada em uma tropa de 1500 agentes, bloqueou a BR-277 e impediu – à bala – a chegada da comitiva de 50 ônibus a Curitiba.  

Na altura do KM 108, em razão de um bloqueio feito pela Polícia Militar, os passageiros desceram de um dos ônibus, quando PM’s fizeram disparos contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais, matando Antonio Tavares e ferindo outras 185 pessoas. Vale destacar que a Polícia Militar não prestou socorro às vítimas. 

Antonio Tavares tinha 38 anos quando foi assassinado, deixando esposa e cinco filhos. Era assentado da reforma agrária no município de Candói e fazia parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade.  

Na avaliação do MST, o ataque à marcha não foi um caso isolado. A repressão, aponta o movimento, está inserida num contexto de intensa criminalização e perseguição aos movimentos sociais de luta pela terra no Paraná, endossada pelo então governador Jaime Lerner. Entre os anos de 1994 e 2002 – primeiro e segundo mandatos de Lerner – ocorreram 502 prisões de trabalhadores rurais, 324 lesões corporais, 07 trabalhadores vítimas de tortura, 47 ameaçados de morte, 31 tentativas de homicídio, 16 assassinatos, 134 despejos violentos no Paraná.