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Artigo

A função do Estado e o vírus da irresponsabilidade em tempos de Pandemia

Publicado: 03 Abril, 2020 - 00h00 | Última modificação: 03 Abril, 2020 - 12h41

O mundo vive uma situação ímpar. O ano de 2020 começa como um filme de ficção, uma distopia. A pandemia do chamado COVID 19 ou Coronavírus como é conhecido, assola o mundo, altera o cotidiano, muda a forma como percebemos a vida humana, a família, as relações interpessoais e coletivas. Altera a percepção de Estado, indivíduo e economia.

O Brasil assiste atônito um enredo surreal, onde o presidente, que deveria articular as ações de enfrentamento à pandemia, desafia a ciência, o bom senso e qualquer senso de responsabilidade. O “chefe maior de Estado”, numa guerra insana, se transforma num vírus nocivo para a preservação da vida do povo brasileiro. De forma desdenhosa e irresponsável chama a doença causada pelo COVID 19 de “gripezinha”, entra em embate com governadores e prefeitos por estarem colocando em prática ações de isolamento social, como recomenda a OMS (Organização Mundial da Saúde). Sem nenhum pudor defende salvar a economia, já que para a sua rasa humanidade, “morrer; todos morrerão um dia”. Chegamos ao ponto onde foi necessária a intervenção, via pressão popular, da Justiça federal proibindo o “presidente” de continuar a propaganda oficial contra o isolamento social e, o twitter apagando suas mensagens nas redes sociais.

As medidas do governo brasileiro até o momento protegem o mercado, socorrem empresas e deixam trabalhadores/as desamparados/as. Essa opção unilateral e nociva ao povo, exigiu a ação do congresso e senado, com projeto de lei de auxilio emergencial de R$ 600,00 para a população já incluída nos programas sociais, desempregados e trabalhadores informais. No entanto, ainda não saiu do papel. Em contrapartida o governo anunciou, ao mesmo tempo, mais uma a MP da Morte ( abril/2020), medida provisória que autoriza empresas e patrões a cortarem salários e reduzir jornadas em qualquer percentual, podendo chegar aos 100%, ou seja, uma reedição perversa do artigo retirado da MP 927 (março/2020). Assim como a anterior anuncia, como se fosse novidade, direitos já garantidos, a exemplo do pagamento de 70% do seguro desemprego para a situação de suspensão do/a/ trabalhador/a. Na prática, a medida reduz salários e suspende empregos.

No momento em que mais se precisa de um Estado forte, vemos a omissão do Estado, deixando a classe trabalhadora e os mais vulneráveis por sua conta risco. Impõe ao trabalhador a cruel escolha entre a vida e o trabalho. O grande capital concorda, infesta as ruas com seus carrões, devidamente protegidos, pedindo o retorno dos/as trabalhadores /as aos seus postos de trabalho, afinal “o moedor de carne não pode parar”. O mais grave é que parte dos trabalhadores acabam convencidos por essa tese. Como isto se explica? Ora, é próprio do sistema capitalista fazer crer que esta é uma escolha natural, afinal o mérito é de quem corre atrás, quem faz por merecer. 

O liberalismo e sua versão mais aprofundada, o neoliberalismo, vastamente defendido e disseminado como se fosse resposta salvadora da humanidade, defende que o “deus mercado” é por si só regulador da produção material da vida, e, portanto o Estado deve interferir o mínimo possível. Neste caso a força do trabalho que produz toda riqueza é desvalorizada, as políticas sociais secundarizadas e o Estado pautado pelas demandas do Capital. Na prática essa premissa se materializa no Estado mínimo para o povo e um Estado máximo para o capital, com isenções fiscais e perdão de dívidas vultuosas para banqueiros e grandes corporações.

O Coronavírus coloca tudo isso em Xeque. Nesse momento uma escolha se impõe: salvar vidas humanas ou salvar a economia. Os países já assolados pela pandemia, mesmo os mais neoliberais, não tiveram dúvidas ante esse dilema. Escolheram salvar vidas e agir para garantir renda aos trabalhadores e trabalhadoras.

O Brasil sofreu em 2016 um Golpe que alterou a lógica do Estado. Até então, os governos petistas, haviam iniciado na gestão pública a lógica de um Estado indutor do desenvolvimento, com ampliação de direitos e fortalecimento das políticas públicas e sociais. A primeira ação do governo golpista em 2016 foi a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os investimentos em saúde e educação. Outras ações de desmonte do Estado e de retirada de direitos se sucederam com maior agravamento e danos, no governo de Bolsonaro, eleito em 2018, como a reforma trabalhista e a reforma da previdência. Tais reformas inauguram o “Não – Estado” para a população e um “Estado – Mãe” para o mercado. Aumenta o desemprego, o sub emprego, a informalidade enquanto dezenas de milhares de pessoas, desprotegidas esperam na fila do INSS para que sejam respeitados seus direitos. Assalariados que viveram 13 anos com uma política de aumento real do salário mínimo, convivem agora com a diminuição da renda e o aumento absurdo do preço de itens básicos; o dólar ultrapassa a casa dos R$ 5,00. Em suma: uma política de menos direitos, diminuição do quadro de funcionários públicos e consequente prestação de serviços à população, estatais destroçadas, o SUS desmantelado, sem recursos e já em exaustão. É neste contexto que chega ao Brasil o COVID 19. 

A atual conjuntura, com uma pandemia que avança a passos largos no país, exige um Estado forte, com ações que ampliem direitos, garantam renda mínima visando a proteção da vida. Um Estado com a ousadia necessária para fazer com que o grande capital e grandes fortunas ajudem a pagar essa conta, uma vez que, historicamente, foram sempre beneficiados. Ao invés disso assistimos aterrorizados o presidente reafirmar a toada neoliberal em defesa do mercado. Na contramão da surpreendente comoção, lucidez, solidariedade e enfretamento sério do resto do mundo, como se fizesse strip tease em pleno palácio da Alvorada, assistimos um “mito”, que escarnecendo condena à morte milhares de brasileiros e brasileiras. 

O que nos resta é reafirmar a função social do Estado. Não cabe ao povo decidir entre a vida e o trabalho, ambos estão diretamente conectados, já que é o trabalho que produz a riqueza desse país. Não se poderia admitir dúvidas na escolha entre salvar as pessoas ou a economia! Menos ainda essa última ser a opção. O Brasil é um país rico, ao mesmo tempo produz imensas desigualdades, que tem aumentado vertiginosamente nos últimos 4 anos. Segundo os dados do IBGE o rendimento médio do grupo de 1% mais ricos do país cresceu 8,4% em 2018, enquanto o dos 5% mais pobres caiu 3,2%. Isto significa que a ação do Estado fez com que os ricos ficassem mais ricos e os pobres mais pobres. 

Cabe nesse momento, cobrar essa dívida. O Estado tem como função garantir as condições mínimas de renda e atendimento à população. As ações de solidariedade, de retorno a uma “humanidade” esquecida que vemos brotar em todos os cantos desse país, principalmente entre os mais pobres, são imprescindíveis e necessárias, alimentam a sensibilidade perdida no umbigo do individualismo, acalentam esperanças e soam como brisas de afetos... No entanto, não retiram e nem substituem a tarefa primordial do Estado que foi construído e deveria ser, para o bem de todos.

 

*Cida Reis (Barbosa, Aparecida Reis) é Secretaria de Formação da CUT/PR, dirigente da APP Sindicato N.S Paranaguá, pedagoga, Mestre em Educação pela UFPR, especialização em Organização do Trabalho Pedagógico (UFPR) e em Sindicalismo e Trabalho (CUT/Dieese).