Porque Lula foi condenado sem provas, didaticamente
Publicado: 20 Abril, 2018 - 07h41
Lula não foi julgado pelo Porto de Mariel, nem pelo sítio de Atibaia, nem por empréstimos do BNDES. Você pode pensar o que quiser sobre Lula, não votar nele, fazer campanha contra, mas a questão da justiça ou não da sua prisão gira exclusivamente em torno do triplex de Guarujá.
A acusação: a) Lula recebeu, em 2009, o triplex (corrupção passiva), que foi mantido, no entanto, no nome da OAS para ocultar patrimônio (lavagem de dinheiro); b) Lula teria ajudado, como presidente da República, a OAS em três contratos com a Petrobrás (ato de ofício ou omissão de ato de ofício). Por se tratar, assim, de um caso ligado à Lava Jato, deveria ser julgado em Curitiba.
O crime pelo qual Lula foi condenado se caracteriza desta forma: receber algum valor ou bem em troca de praticar ou deixar de praticar ato para beneficiar a empresa que deu a propina.
Sobre o item “a”, não há provas diretas nos autos, nem testemunhais nem documentais. Em 2009, o triplex não estava sequer construído. A propriedade (em papel passado) nunca foi de Lula ou Marisa Letícia. A acusação, então, aponta que a posse (usufruto) foi de Lula. Ou seja, ele não era legalmente o proprietário, mas o era de fato. Lula nunca dormiu uma noite no imóvel, nem ninguém da sua família. Visitou duas vezes o triplex, o que não pode caracterizar posse. Desfeita a hipótese da posse, a acusação partiu para a tese de que o apartamento foi “atribuído” a Lula, conceito não previsto no Código Penal. Este fato é comprovado pelos chamados indícios.
Quais são estes indícios: a) um documento rasurado onde o número 141 é sobreposto ao número 174. Marisa era dona de uma cota no edifício Solaris no valor de R$209.119,73 e havia um imóvel reservado para ela (o 141), mas ela poderia usar o dinheiro para comprar qualquer unidade disponível, pagando a diferença. O documento rasurado, segundo a acusação, significaria tentativa de ocultar o negócio. b) tabelas apreendidas na OAS indicam que o imóvel estava “reservado”. c) o depoimento do zelador do edifício, que afirma que Marisa “conheceu as áreas comuns, circulando como proprietária, e não como interessada”. d) reportagem do jornal O Globo de 10/03/2010, denunciando que o casal Lula era o real proprietário do triplex, onde consta inclusive uma confirmação da Presidência da República de que “Lula continua proprietário do imóvel”. e) Lula, em conversa com Leo Pinheiro, não teria discutido o preço do imóvel, o que indicaria que não se tratava de uma compra. f) o depoimento de Leo Pinheiro, alegando que reformas foram feitas para atender pedidos de Marisa. Há trocas de e-mails também discutindo reformas.
A narrativa da defesa, ponto a ponto: a) Lula nunca negou que tinha interesse em adquirir o imóvel. Supor que uma rasura é prova de tentativa de ocultação de patrimônio é ir longe, muito longe nas possibilidades interpretativas. b) as planilhas na OAS circulavam livremente e é muito comum, no comércio de imóveis, reservá-los, o que não significa venda. Além disso, Lula nunca negou que teve, de fato, interesse no imóvel em certo momento. c) Marisa andava como se fosse proprietária porque era proprietária, até então, de uma unidade no edifício, ainda que não estivesse definida qual. Áreas comuns são… comuns. d) a reportagem de O Globo afirmava que Lula e Marisa eram “futuros proprietários” porque eram, como confirmado pela Presidência da República, mas ainda neste momento da unidade 141. Mais tarde, Marisa pediu o dinheiro de volta e o casal deixou de ter direito sobre qualquer unidade. f) por que Lula não perguntou a Leo Pinheiro o preço do triplex? Havia uma tabela, que fixava preço em R$900 mil ou ainda não havia negociações de valores. Há várias interpretações, além daquela que diz que isso prova que o triplex seria dado a Lula. f) o depoimento de Leo Pinheiro é o mais relevante indício, pois nele se baseia a sentença de Moro. Colo abaixo o relato, em 25/01/2018, de Luís Nassif sobre este depoimento.
A denúncia de Léo Pinheiro obedeceu à seguinte trajetória: 01/06/2016 – Delação de Léo Pinheiro (LP) trava após inocentar Lula (https://goo.gl/kp3whZ). 23/11/2016– LP recebe sentença de 26 anos de prisão confirmada pelo TRF4 (https://goo.gl/qFEvgB). 12/07/2017 – por ter ajudado no processo contra Lula, Sérgio Moro reduz a pena de LP a 10 anos e 8 meses. 21/09/2017 – Procuradoria Geral da República não aceita a delação de Léo Pinheiro por não ter apresentado nenhum elemento de prova (https://goo.gl/4kn7tF). Mesmo assim, Moro mantém o depoimento de LP e o TRF4 reduz sua pena para três anos e seis meses. Como já cumpriu uma parte, deverá ser solto em breve (https://goo.gl/TaY6kp).
LP teria dito que o dinheiro para pagar o imóvel viria de uma conta na OAS de R$ 50 milhões, destinada ao PT, da qual teriam sido descontados R$3 milhões para o triplex. O acerto teria sido combinado com o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, em reunião onde só estavam os dois. O depoimento é claramente uma troca: acusar Lula para conseguir redução de pena (22,5 anos a menos). Qual prova LP apresenta? Nenhuma, nem gravação, nem documento, nem foto, nem agenda, nada. E João Vaccari confirmou? Não foi nem ouvido.
Conclusão: todos os indícios indicam que havia a intenção de repassar o triplex para Lula e que a OAS o reformou atendendo pedido do casal presidencial. Nada prova que seria como propina. Os indícios, pelo contrário, indicam que havia uma transação comercial em curso. O mesmo depoimento que serve para condenar Lula, na interpretação de Moro, também o inocenta. LP disse à Justiça: “se o presidente não quisesse eu nós íamos ter um belo problema, não sei o que eu ia fazer com o apartamento porque ele é muito personalizado, é um valor excessivamente maior das reformas que foram feitas, da decoração feita, do que valia o apartamento, isso é público e notório, está nos autos, então está muito claro isso.” Dois engenheiros da OAS endossam esta mesma versão, em depoimentos. Igor Pontes afirmou: “O que foi dito foi que ele estava fazendo uma visita para ver se ele ia ficar com a unidade, um potencial comprador era o termo que se utilizava.” Inquirido por que a reforma no apartamento foi feita, Igor respondeu: “A justificativa foi que no apartamento seria feita uma melhoria com o objetivo de facilitar o interesse pela unidade, porque a unidade era muito simples, era uma unidade básica, enfim, e o objetivo era melhorar o apartamento para ver se de repente o ex-presidente se interessava em ficar.” Mariuza Marques, outra engenheira, confirma a tese: “Não, eu não sei lhe informar se ela possuía um proprietário, se dizia que tinha, iria, assim, reformar, melhorar porque tinha, assim, um cliente em potencial para comprar essa unidade, que tinha interesse nessa unidade.”
O que fica claro é que Lula tinha interesse na unidade e direito de adquiri-la. O que tudo indica é que era apenas um potencial comprador. As reformas, caras, poderiam ser dadas como propina ou mesmo toda a diferença entre a unidade 141 e a 174. Mas Lula desistiu do negócio e pediu os R$209 mil de volta. Por quê? Talvez porque não gostou das reformas, talvez porque teve medo da repercussão política, fosse um negócio lícito ou ilícito. De qualquer forma, o crime pelo que foi condenado não aconteceu. Lula foi, como no filme Minority Report, condenado pela intenção de cometer um crime, um pré-crime. E nem esta intenção está claramente comprovada. Pelo contrário, há mais indícios que atestam que se tratava de uma transação comercial do que de que se tratava de corrupção.
O ponto dois da acusação é que ele teria praticado um ato de ofício que beneficiaria a OAS, em três contratos da Petrobrás. Sérgio Moro, na sentença, exclui isso, pois não consegue, nem ele, formar convicção em torno disso. Daí a importância do depoimento de LP mais uma vez, alegando que se tratava de uma conta geral de R$50 milhões, já que não era possível indicar especificamente quais atos o presidente Lula cometeu para favorecer a OAS. Provas disso? Nenhuma. Vaccari, que podia confirmar (também poderia fazer uma delação premiada), não foi nem ouvido. Logo, não há ato de ofício, apenas uma afirmação genérica sem provas. E a lei especifica que delação premiada só vale com provas e, por isso, LP não foi levado a sério em outras instâncias, mas convenceu ou reforçou a convicção prévia de Moro.
Em suma, Lula foi condenado por um pré-crime, no máximo, e sem ter praticado ou deixado de praticar, na Presidência da República, nenhum ato identificável para beneficiar a OAS. Condenação sem provas, portanto, por um crime que não aconteceu. Não há corpo, não há arma do crime; só há o assassino.
O enredo mais provável do que aconteceu é bem mais simples. Lula saiu da Presidência da República com 87% de aprovação popular e como um dos líderes mais respeitados do mundo. Passou seu mandato viajando para outros países, como um mascate, oferecendo produtos de empresas brasileiras e fazendo acordos bilaterais e multilaterais de comércio com outros países. Isso, em tempos de preços altos de commodities, permitiu vários saldos seguidos na balança comercial, possibilitou o pagamento da dívida externa e criou uma imensa reserva cambial para o Brasil de US$288 bilhões (isso mesmo, dólares). Quando saiu do mandato, continuou operando a favor das empresas brasileiras no exterior, sobretudo a construção civil. Isso é moral? Talvez não, mas não é ilegal. Mesmo que a OAS quisesse dar o triplex a Lula, seria mais razoável supor que era pelo papel que ele desempenhava para a empresa naquele momento e não por atos praticados quatro ou cinco anos antes.
Você pode não gostar do que Lula fazia pela OAS depois que saiu da Presidência. Eu também não gosto. Querer que ele seja preso por isso, sendo que a prática não é criminosa, é absurdo. Você pode acreditar que Lula recebia propina da OAS na forma de palestras, pois é um “cachaceiro” que só sabe “fazer metáforas de futebol”. Eu acho que isso é preconceito com um presidente reconhecido como o melhor ou pelo menos um dos melhores da história do Brasil. Tem muita gente que pagaria sim, muito dinheiro, por uma palestra de Lula, como também pagaria por palestras de Deltan Dallagnol. Não há crime em fazer e receber por palestras, mas é muito mais imoral fazê-las ainda no exercício do cargo público. Além disso, Lula não fazia palestras: abria mercados. Quanto isso vale para empresas da construção civil?
Há outros elementos que comprovam que Lula está sendo perseguido pela Justiça e que a sentença, em si, é ilegal, que o resultado era sabido desde o princípio e que o trâmite jurídico serviu apenas para dar um verniz formal a uma arbitrariedade. Ou seja, o processo é legal na forma, mas não no conteúdo.
Primeiro, se Moro admitiu que o dinheiro não veio de contratos específicos com a Petrobrás, Lula não poderia nem ser julgado por ele e nem acusado pela Procuradoria do Paraná, pois deixa de ser um caso relativo à Lava Jato. O processo deveria ser remetido a São Paulo, foro de Lula. Neste momento, com o fim do foro privilegiado de Geraldo Alckmin (deixou de ser governador para concorrer à Presidência da República), seu processo está sendo remetido do STF para a justiça de primeira instância em São Paulo. Era o que Moro deveria ter feito com Lula, remetendo o processo para São Paulo.
Segundo, construíram a imagem de Lula como o chefe de uma quadrilha, mas ele recebe menos propina que o terceiro escalão. Faz sentido?
Terceiro, a Lava Jato está destruindo o instituto da delação premiada, usando prisões como tortura para forçar denúncias contra quem quer que seja. A lei, para evitar isso, exige que delatores apresentem provas. Sem provas, é o mesmo procedimento que, na idade média, levou a inquisição a queimar diversas mulheres sob a acusação de bruxaria. Delação sem prova é medieval e ilegal. Moro aceitou uma prova ilegal, claramente forçada e, mesmo assim, que contradizia sua tese.
Quarto, no país onde a demora do judiciário para julgar espalha o sentimento de impunidade na população e gera insegurança jurídica, Lula foi julgado em duas instâncias em tempo recorde. Moro mandou prendê-lo minutos após receber autorização do TRF4 para isso. Há mais de uma dezena de condenados em segunda instância em liberdade ainda, esperando ordem de Moro.
Quinto, o TRF4 julgou em desacordo com sua própria jurisprudência. Cito aqui o advogado Márcio Paixão (gl/eVhDGM): “Em diversos julgados, Sua Excelência, Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, vem consignando as balizas adotadas por aquela Turma para formação do convencimento judicial com base somente em indícios, como nesse caso. São, em suma, esses os critérios: (…)Esta prova indireta deverá ser acima de qualquer dúvida razoável, excluindo-se a possibilidade dos fatos terem ocorrido de modo diverso daquele alegado pela acusação. É dizer, seguindo na lição de Knijnik, os diversos indícios que envolvem o fato probando devem ser analisados em duas etapas, primeiro em relação a cada indício; depois o conjunto deles. Assim, sendo cada indício certo e preciso, pode-se obter a concordância a partir do conjunto (op. cit., p. 51), sendo que um único indício, mesmo que certo e grave, pode acarretar na exclusão de um juízo de certeza quanto aquilo que se pretende provar.” Com base nesta jurisprudência, o advogado aposta (o texto é anterior ao julgamento no TRF4) na absolvição de Lula: “firmo três conclusões: (i) o conjunto indiciário é somente parcialmente consistente com a versão da acusação, segundo a qual Lula seria proprietário do tríplex desde 2009; (ii) o conjunto indiciário é plenamente consistente com a versão da defesa, segundo a qual houve interesse pelo tríplex, mas o casal não o adquiriu e Lula não o recebeu; (iii) o conjunto composto pela totalidade dos elementos de convicção (indícios e provas) é integralmente coerente com a hipótese apresentada pela defesa e apenas parcialmente coerente com a hipótese apresentada pela acusação.”
Eu firmo as minhas convicções, sem nenhuma sombra de dúvida: Lula não cometeu crime, não praticou ato identificável para beneficiar a OAS, não recebeu nem nunca desfrutou do triplex, foi julgado de forma parcial, com uso de delações forjadas sem provas, condenado com base em indícios que mais provam sua inocência que sua culpa, em tempo desproporcional em relação a outros réus e em desacordo com a lei e a jurisprudência. Sofre um processo de exceção, legal na forma, ilegal no conteúdo, e é um prisioneiro político.