Enfraquecidas no PR, Sociologia e Filosofia se mostram fortes no Enem
Áreas prejudicadas por mudança no currículo contemplaram 60% das questões sobre Ciências Humanas e suas Tecnologias
Publicado: 20 Janeiro, 2021 - 14h01 | Última modificação: 20 Janeiro, 2021 - 14h09
Escrito por: Angieli Maros /Plural
Com carga encolhida na Rede Estadual de Educação do Paraná, conteúdos de Filosofia e Sociologia tiveram presença relevante no 1º dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), um dos principais instrumentos de acesso de alunos de escolas públicas ao Ensino Superior. O debate sociológico, e também filosófico, conduziu, inclusive, o tema da redação, que este ano foi ‘O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira’.
De acordo com Rodrigo Czajka, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o domínio de conteúdos abordados pela Sociologia foi cobrado em pelo menos vinte questões. Do campo da Filosofia, foram pelo menos outras sete, se levar em consideração apenas o aspecto estrito da abordagem, afirma Joelson Oliveira, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Ao todo, a parte de Ciências Humanas e suas tecnologias teve 45 tópicos – o que significa que 60% da prova específica contemplou as referidas disciplinas.
“Das 45 questões [de Humanas], praticamente 20 delas são da área de Sociologia. Não é uma discussão de [Émile] Durkheim, [Max] Weber, de [Karl] Marx (autores clássicos da área). Não tem isso. São questões atreladas ao cotidiano, à prática das pessoas, à questão política, ao impacto ambiental, ao desenvolvimento urbano, à saúde pública. Todas essas questões estão voltadas para a análise do campo sociológico”, coloca Czajka, chefe do departamento de Sociologia e professor do curso de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Sociologia da UFPR.
Um dos exemplos usados pelo docente exigia dos candidatos análise sobre o processo de expansão das cidades no Brasil na segunda metade do século XX. Apesar da discussão urbanística, o conteúdo, afirma o professor, também tem relação profunda com a Sociologia.
“Não se trata de um tema voltado apenas para quem discute urbanismo, mas de um trabalho que também tem a Sociologia no debate porque está falando de pessoas envolvidas e que são impactadas direta ou indiretamente pelo processo de urbanização. A gente poderia entender como um tema de geografia também, mas estamos falando de expansão das cidades, de ocupação urbana e de como trabalhar com o contingente populacional e como o governo, de forma direta, pode contribuir com planejamento e com a organização desses espaços em expansão.”
Abordagens da Sociologia deram o tom também a uma questão sobre a relação entre a febre amarela e a tragédia provocada pelo rompimento da Barragem do Fundão, no município mineiro de Mariana, em 2015. A proposta era que o estudante analisasse o conteúdo de dois textos divergentes para encontrar a contradição presente entre eles.
“Aqui uma coisa importante é analisar esses textos nas suas contradições, mas também se posicionar ou ter uma leitura mais social desses argumentos a ponto de você construir a sua argumentação em torno desses dois textos e, daí, encontrar a contradição”, acrescentou Czajka. “E é essa uma das capacidades que a Sociologia dá.”
Filosofia
Debates filosóficos também foram bastante apreciados na elaboração da prova. Segundo Oliveira, que é filósofo, professor e coordenador do curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, foram pelo menos sete questões distribuídas em áreas distintas: Epistemologia, Política e Antropologia. A prova evocou Aristóteles, David Hume e Thomas Nagel, por exemplo, em problemáticas voltadas para aspectos da democracia, ética política e reflexões sobre o conhecimento
“Teve uma preferência pela política em detrimento da ética, o que eu achei interessante pelo momento que estamos vivendo”, salientou. De acordo com o docente, a abordagem filosófica não se resumiu às questões “técnicas”, mas, como todas as áreas de Humanas, dilui-se por boa parte do Enem.
“A prova mostrou a importância da Filosofia tanto no sentido técnico quanto no sentido amplo, como análise da sociedade e de problemas contemporâneas. A questão da saúde, da natureza, dos direitos humanos e de gênero estão entre os temas mais candentes do nosso tempo. E como a gente soluciona estes problemas? Justamente com reflexão, com abordagem crítica e com capacidade argumentativa, que são coisas próprias da Sociologia e da Filosofia”, avalia Oliveira.
Redação
Além disso, a Sociologia e Filosofia foram base das discussões levantadas pelo tema da redação – que, além do peso específico, é usado como o principal critério de desempate no Sisu, programa que usa as notas do Enem para definir ocupação de vagas em universidades públicas.
De acordo com professores da Rede Estadual do Paraná, estigma é um assunto tratado dentro da disciplina de Sociologia. Na área, observa Czajka, o tema inclusive dá nome a um clássico escrito pelo cientista social canadense Erving Goffman (Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada).
“Foi um tema bastante explorado pela Sociologia. Embora fale de uma questão de saúde, também trata de como indivíduo desprovidos de uma certa capacidade de saúde são postos em uma outra condição de ‘normalidade’, ao serem compreendidos como sujeitos anormais, e são estigmatizados por isso”, destaca Czajka.
O debate também é destaque na Filosofia. Conforme Oliveira, saúde mental é um assunto bastante explorado por estudiosos da área, principalmente na contemporaneidade. “É um tema de muita repercussão principalmente se levar em consideração a obra do [Michel] Foucault. No fim, o problema central da obra em que ele trabalha com o tema é o problema da estigmatização. Ele mostra que nem sempre a doença mental foi tratada como vem sendo tratada na contemporaneidade. Isso daria para o estudante uma série de argumentos”, afirma o docente da PUCPR .
Perda para o aluno
Junto com Artes, Filosofia e Sociologia tiveram a carga horária reduzida pela metade no currículo da Rede Estadual de Ensino do Paraná. De duas aulas por semana, agora será apenas uma, dentro de uma nova matriz curricular que passa a valer já neste ano. A decisão foi tomada pelo governo de Ratinho Jr. sem debate entre a comunidade escolar, o que gerou questionamentos.
Ao Plural, o diretor de Educação da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed), Roni Miranda, chegou a dizer que não houve debate porque, se não, “cada professor iria puxar para o seu lado”. Também atrelou a escolha de reduzir a presença destas áreas no novo currículo a uma “preocupação com o emprego” dos jovens alunos.
No entanto, especialistas avaliam a medida como um retrocesso que pode limitar o desenvolvimento da capacidade analítica e crítica dos estudantes e, consequentemente, o desempenho dos alunos em exames e processos seletivos, como é o caso do Enem.
Segundo Czajka, uma das principais características do exame é exigir do estudante uma reação reflexiva diante dos problemas apresentados – capacidade trabalhada, sobretudo, por conteúdos da Filosofia, da Sociologia, da História e da Geografia Humana.
“Eu diria que nem só nas questões de Humanas, mas nas questões de Linguagens também o aluno tem que ter compreensão global dos fatos históricos e dos fatos sociais”, observa o docente.
Por isso, para ele, a decisão tomada pelo governo do Paraná pode acabar prejudicando os alunos da Rede Pública, que têm o Enem como uma das principais portas de entrada para o Ensino Superior.
“Pensando a Educação como política pública, temos que entender também a presença dessas disciplinas de construção de conhecimento como direito que os alunos têm para construir a sua compreensão, construir o seu argumento e ter, depois, um bom desempenho nessas provas. Se eles não têm essa percepção, serão prejudicados nessas provas.”
O coordenador do curso de Filosofia da PUCPR avalia que a percepção enviesada sobre muitos dos temas contemplados pelas disciplinas de Humanas pode ser interpretada como um dos motivos que leva conteúdos de Sociologia, Filosofia e Artes a perderem espaço nos currículos. Em sua opinião, pesa ainda o fato de que, ao invés de serem reconhecidas como instrumento de independência intelectual dos alunos, acabam cada vez mais enfraquecidas dentro de uma política que destoa do caminho no qual a Educação deveria caminhar.
“Hoje, falar de direitos humanos, saúde, gênero, natureza, democracia, pensamento crítico já é associado à esquerda. Mas no caso da democracia, por exemplo, a bandeira da democracia não deveria nunca ser uma bandeira de A ou de B. Deveria ser de toda a sociedade, assim como temas de direitos humano. Mas, de repente, a gente tem uma parte da sociedade que acha que não deve falar, que não deve assumir e, de alguma forma, isso repercute nas falas dos governantes. No caso do Paraná, a gente tem ainda essa questão da diminuição das aulas, que vem na contramão justamente do que mais a gente precisa”, conclui Oliveira.